Deus criou o homem e a mulher para perpetuarem a espécie. Ora, mas, onde está Deus em nosso ordenamento jurídico? A resposta pode ser até audaciosa, mas Deus se encontra em uma “terra de ninguém”, local este ilustrado na figura do preâmbulo da nossa Constituição Cidadã. Convalido com Hans Kelsen, o entendimento de que o preâmbulo não passa de uma introdução solene que alberga ideais políticos, morais e religiosos, vindo a serem posteriormente desenvolvido na Constituição, ressalto que, o desenvolvimento a respeito da religião na nossa Carta, não passa de uma mera ilustração liberal e igualitária a quaisquer religiões, visto isso na parte dos direitos fundamentais, no inciso VI do art. 5º da referida carta. Percebe-se assim que, o preâmbulo remonta sua pujança aos anseio políticos e sociais, como ressalta Pontes de Miranda, fica o preâmbulo menos palpável ao âmbito jurídico.
Estamos no Brasil onde tudo pode acontecer, onde dólares podem surgir nas cuecas, onde um filho pobre nordestino pode se tornar presidente da república, agora, aceitar uma argumentação pautada em Deus, na mais alta instância do Poder Judiciário do Estado, é algo completamente inconcebível, penso eu que isso seria uma vasta aplicação dos ideais retóricos de Perelman. A era do lobby religioso, principalmente da Igreja Católica, já passou, vivemos agora no mundo das pluralidades e das relatividades, ora Einstein demonstrou que até a física é relativa. Entretanto, ainda hoje em nossa sociedade existem verdadeiras “múmias” estagnadas no tempo, com seus cérebros talvez perdurados à formol, que não percebem isso, vejamos e tomemos por ponto referencial, a partir de agora, no presente texto, a ADI 4.277, de relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, julgada procedente no dia 05/05/2011.
Tal Ação Direta de Inconstitucionalidade tinha como tema geral a regulamentação de casais do mesmo sexo, no que diz respeito aos privilégios da união estável, vindo a ser entendida como entidade familiar, alçando a inconstitucionalidade no art. 1.723 da Lei 10.406, de 10.01.2002, Código Civil Brasileiro.
O referido artigo traz a seguinte redação:
Art.1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família.
Valendo ainda a ilustração do ss3º do art. 226 da nossa Constituição Federal de 1988, temos que, para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Atrelando uma interpretação restritiva ao assunto, seria impossível o reconhecimento da união estável à casais homoafetivos. Data Venia, a sociedade se organiza e se desenvolve na sua completude, divergindo então à passos largos do que ante propusera seu legislador nas suas regras. Estas ficarão vacantes na sociedade, e é nesse contexto, que Ronald Dworkin, se valendo da ideia do pós-positivismo, nos mostra que deverá se valer dos princípios, também elaborados pelo legislador, como formas interpretativas e decisórias sobre o problema vacante, pois os mesmos possuem uma estrutura axiológica que encoraja um grau de ponderação e de generalidade, se comparados com as regras, as quais terão uma aplicação lógico-formal, a subsunção. Observa-se assim, que não podemos tratar o direito como é, mas como deve ser.
Será que a organização e a axiologia social de 1988 e de 2002 são as mesmas hoje? É óbvio que não, e não é só porque o Brasil conquistou o penta ou porque uma figura feminina tomou a frente do Executivo Federal. Na Antiga Grécia, Heráclito já enunciava que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Fica então, a interpretação jurídica a mercê da contextualidade do prisma histórico-social. Assim a homoafetividade deve ser encara por nós como mais um dos elementos comuns da sociedade e não como algo pejorativo ou criminoso, visto que, se quer tipificação penal temos para tal caso.
Vendo as alterações sociais e a vacância das referidas regras normativas, emerge ao caso, a figura dos princípios, visto que, assim como trata J.J. Gomes Canotilho, o ordenamento jurídico, configurado na Constituição, é um sistema aberto para regras e princípios.
Vivemos em um Estado Republicano que tem dentre outros princípios para sua legitimação a dignidade humana (CF, art.1, III) e a igualdade(art.5º, caput.).
Trato o primeiro como sendo um dos mais notáveis reflexos dos direitos da terceira geração, direitos a fraternidade. Essa dignidade, ponto de grande discussão doutrinária, devido a sua ampla subjetividade, compreendo ser, os pressupostos formais e materiais perante a sociedade como ao direito para a prosperidade e o desenvolvimento psíquico social de cada humano. Ora, atentando para tal definição, vemos que os casais homoafetivos, observando o ente família, possuem direitos subjetivos para a legitimação da prosperidade e do desenvolvimento daquele ente, ficando esse violados por uma restrição interpretativa, e foi nesse entendimento que o pretório excelso deu provimento a ADI 4.277.
Agora atentamos a igualdade, principio que teve forte desenvolvimento desde a Revolução Francesa do séc. XVIII. Mesmo que a igualdade seja tratada, se valendo de Rousseau, como uma quimera especulativa, ela através da proporcionalidade e da ponderação deverá tratar desigualmente os desiguais e igualmente os iguais. Observando o caput do art. 5º da Constituição Federal, vemos explicitamente que seu texto aborda a expressão “Todos são iguais perante a lei..”, destarte, a opção sexual não deverá ser levada em conta ao tratamento da lei, porém na maioria da vezes isso não acontece, havendo com isso um preconceito às pessoas com orientação homossexual, ficando essas às margens da lei.
Sem mais delongas, não devemos levar em conta uma vacância legislativa, mas sim o desenvolvimento da sociedade, e não o seu preconceito, destarte, como enfatizou o Ministro Ayres Britto, a base de uma sociedade desde os primórdios, é a família. E não é só porque determinadas pessoas tenham orientação sexual diferente da maioria que elas serão impossibilitadas de promover o desenvolvimento de suas famílias. E foi esse o entendimento seguido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 4.277, reconhecendo, assim como ponderou o Ministro Ricardo Lewandowski, a união homoafetiva como entidade familiar aplica-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, ou seja, a união estável, dentre essas regras e direitos tomemos como exemplo: comunhão de bens, direito a herança, adoção, licença gala, pensão alimentícia, dentre outros direito albergados em nosso ordenamento jurídico.